É uma manhã ensolarada de quinta-feira em Maceió, no leste do Brasil.
Ruty Pereira tem muitas tarefas para se manter ocupada em casa. Mas lá está ela, sentada na primeira fila de uma reunião em seu centro comunitário local. Pinturas de balões e nuvens decoram as paredes.
A filha de Pereira, Tamara, de 10 anos, está sentada em seu colo. A boca da menina está ligeiramente aberta. Seus braços estão dobrados, travados nos cotovelos.
Há outras mães ali, sentadas ao lado de seus filhos, que têm idades semelhantes e apresentam sintomas parecidos. Muitas delas estão em cadeiras de rodas.
Em certo momento da reunião, Pereira se manifesta. Ela quer saber se todos têm direito ao auxílio financeiro que está sendo discutido.
O grupo olha para a palestrante, Alessandra Hora dos Santos, que tem sido sua matriarca e defensora por anos. Eles ouvem suas respostas, na esperança de ouvir que todo o seu trabalho árduo finalmente valeu a pena.
Ao longo da última década, as mulheres nesta sala passaram de se sentirem sem voz e impotentes a serem ativistas declaradas, unindo-se para fazer algo que jamais imaginaram. Elas exigem que o governo brasileiro as indenize pelo que consideram uma falha em protegê-las de uma doença notória.
Elas querem reparação, dizem. Querem indenização para seus filhos.
Um diagnóstico preocupante
Para Pereira, tudo começou em 2015, quando ela tinha pouco mais de 20 anos e estava grávida. “Fiz todos os exames pré-natais e estava tudo bem”, diz ela por meio de um intérprete.
Mas depois, quando Tamara nasceu, algo estava errado. Sua cabeça era pequena demais.
O neurologista a abordou e perguntou: “Mãe, você já teve Zika?”
O médico se referia a um vírus transmitido por mosquitos que sequestra uma proteína essencial para o desenvolvimento normal do cérebro. Como muitas crianças nascidas de mães infectadas com Zika durante a gravidez, Tamara tinha microcefalia — um cérebro subdesenvolvido. O médico disse a Pereira que era improvável que sua filha algum dia andasse ou falasse.
“Muitas vezes, afeta não só a cabeça, mas também os braços e as pernas”, diz Mardjane Lemos, médica infectologista da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, por meio de um intérprete. “Afeta a audição e a visão.”
Quando Pereira recebeu a notícia, “meu mundo desabou”, ela relembra. “Quando você planeja ter um filho, não é só a criança — é uma vida inteira, um futuro, faculdade, casa, tudo.”
Pereira ligou para o marido em lágrimas, desesperada. Ele a consolou, dizendo: “Acalme-se, porque Deus é o melhor médico.”
As consultas médicas começaram imediatamente. Pereira levava Tamara a consultas semanais que exigiam uma viagem noturna exaustiva de ônibus para ir de sua residência rural até o hospital da cidade. Mais tarde, Pereira levava a filha correndo para o pronto-socorro quando as coisas, de repente, saíam do controle — como quando o balão que ajudava a fixar o tubo de alimentação de Tamara em seu estômago estourava ou quando ela vomitava a ponto de desidratação.
Como disse Iana Flor, cujo filho Pedro também foi afetado pelo Zika: “É complicado porque um dia pode ser bom e no dia seguinte é como uma bomba”.
Ainda assim, apesar das dificuldades e de viver com poucos recursos, Pereira era determinada. “Quando você tem um filho especial, você se dedica totalmente a ele”, diz ela.
Seu marido trabalhava como empreiteiro da construção civil, pagando as compras do supermercado e outras despesas da casa. Mas Tamara era inteiramente responsabilidade de Pereira. “Ele esperava que eu cuidasse de todas as necessidades de Tamara — todos os médicos, todas as terapias, todos os especialistas”, conta.
Pereira reconhece que não sobrava muito para o marido e todas as suas expectativas de que ela cozinhasse, limpasse e cuidasse da filha.
“Eu me sentia sufocada”, diz ela. “Uma mulher, quando está em um relacionamento, meio que vive para a outra pessoa. Ela deixa de ter sua própria vida.”
Então, depois de 12 anos de casamento, Pereira disse ao marido que havia terminado. Ela e Tamara se mudaram para uma casa alugada em outro bairro.
“Eu ficava sozinha o tempo todo”, diz ela. “Foi muito difícil.”
Após o “fim”
O isolamento não durou muito. Quando Pereira levou Tamara para fazer fisioterapia, conheceu outras mães cujas vidas também haviam sido afetadas pelo Zika. Elas encontraram pontos em comum nas dificuldades de cuidar dos filhos e nas questões financeiras, e se fortaleceram mutuamente.
Ao todo, no Brasil, cerca de 3.300 “bebês Zika” nasceram em um período de quatro anos. A doença impactou desproporcionalmente as famílias mais pobres e rurais “porque essas regiões carecem de saneamento básico”, afirma o Dr. Lemos. “Muitas dessas mulheres não têm sistema de água encanada em casa”, o que significa que frequentemente precisam coletar água da chuva em recipientes que servem como habitat ideal para a reprodução de mosquitos. “Ninguém vai jogar água fora, mesmo que haja larvas dentro”, diz ela.
As consequências para as famílias afetadas pela doença são duradouras. “Para elas, o Zika não acabou”, diz Luciana Brito, psicóloga, pesquisadora e codiretora do Instituto Anis de Bioética.
É uma história que se repete no mundo todo, diz Brito — em grande e pequena escala. Um desastre natural ou de saúde pública atinge uma comunidade e ela se torna o assunto principal. Mas, rapidamente, as pessoas se voltam para a próxima tragédia em outro lugar. Para aquela comunidade original, porém, o desafio está apenas começando.
No Brasil e em outros lugares, Brito e seus colegas estão explorando essa desconexão entre o fim oficial de um desastre e a realidade contínua para aqueles que estão no epicentro das dificuldades.
“Não há fim para as pessoas mais afetadas”, diz Brito, que trabalha com comunidades muito tempo depois que o resto do mundo já seguiu em frente. Ela e sua equipe ajudaram Pereira e as outras mães a formar uma associação comunitária para defender suas necessidades. Chama-se Família de Anjos e é dirigida por dos Santos.
Dos Santos cita um ditado brasileiro para explicar a luta constante que ela e as outras mulheres — a quem chama de “suas mães” — precisam enfrentar. “Temos que matar um leão por dia”, diz ela por meio de um intérprete. “Você conquista uma coisa e já tem que pensar na próxima. Então, todos os dias estamos matando leões aqui.”
Uma luta por um lar
O primeiro leão que o grupo enfrentou foi a casa própria. “Se você tem uma casa, você tem qualidade de vida, você tem dignidade”, diz Pereira.
No Brasil, famílias de baixa renda com filhos com deficiência têm prioridade para moradia popular, gratuita. Mas isso não acontecia com essas mães. Elas ligavam, mas Brito diz que as autoridades nunca retornavam as ligações.
Então, em um dia quente de 2020, Pereira se juntou a algumas dezenas de mães para um protesto em frente a um escritório de habitação do governo. Algumas carregavam guarda-chuvas para se proteger do sol. Todas empurravam seus filhos em cadeiras de rodas, vestindo camisetas amarelas com a frase: “Microcefalia não é o fim”.
“Exigimos uma resposta!”, gritam elas em um vídeo gravado naquele dia.
“Jamais esquecerei este dia especial em que paramos o trânsito em prol dos nossos filhos”, diz Pereira. “Se você não luta, se não aparece, as pessoas pensam que está tudo perfeito. E não está nada perfeito.”
Pereira conta que o protesto foi ao mesmo tempo empoderador e humilhante. Algumas de suas crianças choravam. Ela se lembra de pessoas gritando: “Voltem para casa, peguem roupa para lavar.”
Mas bastou um dia para que as mulheres conseguissem uma reunião com a autoridade competente, que finalmente as ajudou a conseguir moradia gratuita. Agora, elas eram donas de casa.
Pereira conseguiu se mudar para um apartamento térreo em um conjunto habitacional nos arredores de Maceió. O lugar é pequeno, mas aconchegante. “Eu amo este apartamento”, diz ela. “Ele é meu. Não o ganhei de nenhum homem. Consegui com a minha própria luta.”
Um dia, no verão passado, Tamara está sentada em sua cadeira de rodas na sala de estar. Ela tem grandes olhos castanhos e um rosto expressivo. Tamara não fala, mas é participativa. “Essa moça é muito alegre e gosta de estar perto das pessoas”, diz Pereira.
De vez em quando, Pereira se inclina para limpar um fio de saliva do queixo de Tamara.
Há uma batida suave na porta. É Lenice do Nascimento, uma querida amiga de Pereira que mora no prédio ao lado. Essa é a vantagem de morar aqui — Pereira não está mais sozinha. Seus vizinhos são as mães e as crianças com quem ela lutou para conseguir essa moradia.
Aliás, quando Pereira decidiu terminar o ensino médio, foi Lenice do Nascimento quem se ofereceu para cuidar de Tamara à noite para que ela pudesse concluir os estudos.
“Era um sonho para mim poder estudar”, diz Lenice do Nascimento por meio de um intérprete, “mas com uma família, com filhos, fica muito difícil e eu não conseguia. Então, posso fazer isso por ela.”
Pereira folheia alguns de seus cadernos escolares, cada um repleto de caligrafia cuidadosa. “Nunca pensei que voltaria a estudar e terminaria”, diz ela. “Mas agora que consegui, me sinto tão realizada. Aprendi que existe um mundo inteiro à minha frente.”
Por enquanto, Pereira ganha um dinheiro extra limpando casas nos fins de semana, e é quando outra amiga próxima cuida de Tamara.
“Essas mulheres, eu as chamo de meu terceiro braço”, diz ela. “Somos irmãs de resistência.”
As mulheres se tornaram uma fonte crucial de apoio para Pereira. O resultado é que ela se sente mais no controle de sua vida — uma vida que continua centrada em sua filha.
“Antes dela, eu era uma pessoa extremamente egoísta. Eu tinha essa mania de dizer: ‘Você vive a sua vida, eu vivo a minha'”, diz Pereira. “Mas agora eu vivo para Tamara. Minha filha mudou minha vida. Ela abriu meu coração, que agora é mais sensível ao amor e ao perdão.”
Uma reivindicação de reparações
Há alguns meses, as irmãs da resistência venceram uma batalha especialmente crucial.
As mulheres finalmente chegaram a uma conclusão importante: nada daquilo precisava ter acontecido. O governo, dizem elas, poderia ter implementado medidas para controlar a população de mosquitos e ensinado a comunidade a evitar a exposição ao Zika, prevenindo assim todo o sofrimento que enfrentaram.
Então, elas começaram a exigir indenizações do governo brasileiro para seus filhos. Consideraram isso uma justa compensação por tudo o que sofreram. Também queriam um pedido de desculpas.
“O governo brasileiro falhou em fornecer saneamento básico, condições de saúde e políticas públicas básicas para garantir o essencial para as pessoas”, afirma dos Santos. “O que cria as condições perfeitas para a proliferação de doenças infecciosas.”
“Essas mulheres foram negligenciadas pelo governo”, diz o Dr. Lemos. “Não tenho dúvidas disso.”
“É o reconhecimento de que essas mulheres importam”, diz Brito. “Elas foram esquecidas pelas autoridades públicas. E agora, este projeto de lei diz: ‘Vocês importam para nós’. E o dinheiro é apenas uma forma simbólica de fazer isso.”
Dos Santos levou o caso diretamente à capital brasileira, onde usava sua roupa favorita. “Eu estava com minha camiseta amarela”, diz ela. “Amarelo é a cor escolhida para representar o vírus Zika, calça preta e sandálias de salto alto.”
No final do ano passado, o projeto de lei de indenização foi aprovado pelo Congresso Nacional. Em seguida, chegou à mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o vetou, alegando dificuldades orçamentárias. Então, neste verão, o Congresso derrubou o veto.
Após quase uma década de luta, o projeto se tornou lei.
O Brasil concordou em pagar a cada criança uma indenização única de cerca de US$ 9.000, mais US$ 18.000 por ano pelo resto de suas vidas. O projeto se refere a esse dinheiro como indenização por dano moral.
uma grande vitória e um reconhecimento de erro no mais alto escalão do governo brasileiro. Pereira disse que o dinheiro lhe permitirá comprar alimentos mais saudáveis e talvez até mesmo um carro.
“Isso trará mais qualidade de vida”, diz ela.
Flor concorda. “Este projeto de lei será de grande ajuda para todas nós, mães”, afirma. E “dará dignidade a essas crianças”.
Algumas das mães estavam dentro do Palácio do Congresso Nacional quando o projeto de lei foi aprovado.
As mulheres se abraçaram, pularam e comemoraram.
Fonte: npr.org por Ari Daniel
