Em 8 de setembro de 1504, diante do Palazzo della Signoria, Florença recebeu um presente para a eternidade. Um jovem de vinte e seis anos, chamado Michelangelo Buonarroti, entregava à república uma escultura que deixaria de ser apenas pedra para se transformar em linguagem universal: o David. Ali estava o corpo humano erguido em sua máxima tensão moral, pronto para enfrentar o gigante, não apenas qualquer inimigo, mas Golias, o colosso filisteu descrito na Bíblia, símbolo da força bruta e da arrogância.
O contexto em que nasceu essa obra é tão revelador quanto a própria escultura. Florença vivia entre repúblicas instáveis, a memória da expulsão dos Médici e a constante ameaça de potências estrangeiras. O povo queria símbolos, e Michelangelo lhes ofereceu não um rei coroado, mas um rapaz nu, atento, de olhar que atravessa séculos. David, personagem bíblico que derrota Golias com uma funda — uma arma simples, uma tira de couro ou tecido usada para arremessar pedras com grande velocidade —, foi transfigurado em arquétipo de cidadania. Era a juventude que enfrentava com coragem um mundo desmedido.
O Renascimento encontrou em “David” uma síntese inigualável. Ali se reuniam a redescoberta do corpo humano, a exaltação da razão e a fé na liberdade individual. Para a cultura ocidental, poucas obras dialogaram tanto com o futuro: cada veia pulsante, cada músculo em contrapposto — a postura clássica de equilíbrio entre tensão e repouso —, cada olhar calculado tornava-se alegoria da coragem cidadã.
Especialistas destacam a singularidade da peça: não é o momento da vitória que Michelangelo nos dá, mas o instante anterior ao combate. O mármore de Carrara se torna pele, tensão e silêncio. O que impressiona não é apenas a perfeição anatômica, mas a energia contida, a respiração suspensa antes do gesto fatal.
Não por acaso, artistas de gerações posteriores renderam-se à grandeza do colosso florentino. Auguste Rodin afirmava: “Em David está o segredo da escultura: a eternidade no instante”. Pablo Picasso dizia que “ninguém nunca mais conseguiu superar a juventude petrificada de Michelangelo”. Já Henry Moore acrescentava: “Cada volta do corpo de David é uma lição de equilíbrio entre o humano e o divino”.
Michelangelo, nascido em Caprese em 1475, já era reconhecido em Roma e Florença quando aceitou, em 1501, o desafio de trabalhar um bloco de mármore considerado “impossível”. Ali, outros escultores haviam fracassado. Ele, com apenas vinte e seis anos, fez surgir um corpo monumental, 5,17 metros de altura, 5,5 toneladas de beleza e assombro. Sua vida, marcada por genialidade precoce, dramas pessoais e obsessão pela forma, encontrava no “David” a mais perfeita tradução.
Hoje o original não está mais à mercê das intempéries da Piazza della Signoria. Desde 1873, repousa na Galleria dell’Accademia, em Florença. Lá estive em 1998 e jamais esquecerei o impacto: caminhar pelo corredor, avistar ao fundo a figura erguida, sentir cada detalhe que brota do mármore como se respirasse. Um espetáculo visual onde perfeição e espiritualidade se tocam. O mármore de Carrara, frio ao tato, é calor humano diante dos olhos. E no dia de hoje devem ser assinalados 521 anos desde que foi apresentado ao público o David, lembrando-nos de como a arte permanece como testemunha da grandeza humana.
Mas o “David” é também convite à reflexão sobre a generalidade da condição humana expressa em várias artes. Se na escultura Michelangelo encontrou sua síntese, na música clássica Beethoven, com sua Nona Sinfonia, ergueu um monumento sonoro ao ideal de fraternidade universal; na pintura, Leonardo da Vinci, com a “Última Ceia”, inscreveu a tensão do humano diante da transcendência; na literatura, Tolstói, com “Guerra e Paz”, revelou o destino dos homens em meio a forças históricas avassaladoras; na arquitetura, Antoni Gaudí, com a Sagrada Família, abriu espaço para que pedra e luz se convertessem em oração coletiva. Cada uma dessas expressões é um “David” em seu campo, um chamado à grandeza do humano contra as forças que o diminuem.
Na literatura sagrada, também encontramos equivalentes luminosos. O Sermão da Montanha, de Jesus Cristo (4 a.C.–33 d.C.), é um marco literário que condensa ética e sabedoria em palavras precisas. Sua força atemporal inspira reflexão, molda condutas e guia a humanidade com clareza e profundidade universal. Do mesmo modo, As Palavras Ocultas, reveladas por Bahá’u’lláh (1817–1892), são uma criação espiritual única, destilando a essência das revelações passadas em uma luz unificada. Ativa e urgente, essa obra reorienta mentes, edifica almas e regenera a humanidade com sua força transformadora.
E aqui cabe a pergunta que ecoa no leito dos séculos: como seria se as antenas da raça, os grandes artistas e artesãos do tempo, tivessem sido continuamente encorajados a criar obras que dessem relevo aos melhores sentimentos humanos? Se as artes tivessem sido convocadas não apenas para eternizar batalhas, heróis militares e monumentos de poder, mas para refinar a espécie humana? Talvez hoje tivéssemos uma humanidade mais atenta ao entendimento entre povos e culturas, mais comprometida com políticas de inclusão, mais voltada a cultivar a delicadeza e não a brutalidade.
“David” nos mostra que isso é possível. Que do mármore frio pode nascer um olhar vivo; que da fragilidade aparente pode surgir a força da coragem; que da arte pode vir não apenas a beleza, mas o ensinamento mais urgente: somos capazes de ser maiores do que os gigantes que nos oprimem.
Fonte: www.brasil247.com por Washington Araújo Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.
